quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Histórias que o povo conta...

"Meu namorado é de uma cidadezinha do interior do estado, Uruçuí, de onde ele voltou das festas de natal em família há poucos dias. Ele tem amizade com duas pessoas de lá que, pelo o que ele me conta, me parecem bem interessantes. Lúcia e Esperança são duas senhoras, por volta de seus 40 anos, a quem ele devota profundo respeito e admiração. Ambas vêm da Umbanda e são famosas benzedeiras. Lúcia tem uma fama não muito boa por conta de seu temperamento irascível e, por vezes, ignorante, mas parece ser boa pessoa pra quem consegue atravessar as paredes cobertas de espinhos que ela mantém ao seu redor, com as quais se defende do mundo.
Esperança não tem lá também essa boa fama. Seu pai era conhecido por jogar criancinhas pro alto e apará-las na ponta de um facão. Sua mãe era a típica feiticeira da cidade, conhecia reza pra tudo, pra curar quebranto, pra arco caído, pra controlar incêndio, pra se esconder por trás do fio de uma faca, pra secar uma árvore arrancando-lhe uma folha enquanto pronuncia três palavrinhas misteriosas, e uma infinidade de coisas. Pelo menos é o que se conta dela.
Esperança aprendeu o que pôde com a mãe e dentro dos terreiros de Umbanda, nas incontáveis brigas com os demais pais e mães de santo com os quais entrava em constante conflito, chegando uma vez a fazer o teto de um desses terreiros desabar, em resposta a uma demanda que lhe foi encomendada por um deles. As pessoas têm medo de Esperança e Lúcia. De Lúcia têm mais medo porque ela diz que não se esconde por trás de demanda, que resolve as coisas no facão mesmo.
Esperança chamou atenção de um velho que tinha fama de feiticeiro, e não por nada, já que quando se zangava com alguém fazia moscas saírem da boca dos seus detratores. O velho quis ensinar à Esperança o que sabia, mas ela recusou porque tinha medo dele. E não por pouco.
Deu que o velho morreu e enterrou consigo seus segredos. E eram muitos, tantos que seu caixão pesou de forma sobrenatural quando foram velar seu corpo. Sem conseguir levá-lo pro cemitério devido ao peso, teve que ser enterrado ali mesmo na sala de sua própria casa. Mas a única filha dele sabia que ele queria que fosse assim. Ninguém ousava ir contra a vontade dele, estivesse ele vivo ou morto. Ela também conta que ele enterrou seus livros e escritos de feitiçaria aos pés de uma árvore. Qualquer dia eu me meto a arqueólogo em busca dos alfarrábios do velho.
Ali por perto fica a Serra Vermelha, onde as rezadeiras sabiam que era ponto de encontro de bruxas, lá no topo, onde tem uma pedra em forma de rosa de cinco pétalas. Lúcia sonhou certa vez com uma nuvem de bruxas indo em direção à montanha, voando montadas em suas vassouras. Uma delas inclusive, chamou Lúcia, que estavava acompanhada, no sonho, do meu namorado, mas só conseguiram ir até certo ponto, quando foram vistos e perderam "a força de voo".
Essas são histórias de Uruçuí, cidade que alguns macumbeiros que evitam o local dizem que o Diabo deixou sua pegada.
É incrível pra mim ver que histórias desse tipo correm nas cidadezinhas pacatas do interior do meu estado. Onde existem feiticeiras de verdade, tão verdadeiras qe nem se consideram como tais, diferente de muitos que querem se valer com feitos medíocres e seus atestados carimbados por alguém igualmente medíocre.
Não. Lá em Uruçuí eles dizem: "aquelas são nascidas bruxas!" Mas não diga isso pra Lúcia, pois corre o risco dela avançar segurando o facão na mão pra lhe dar uma surra por tamanho xingamento.
Essas são vivências de Lúcia e Esperança, duas amigas, mulheres que não têm acesso à cultura, senão àquela em que vivem.
Uma coisa que penso muito é que o poder dessas pessoas só tem validade lá onde elas vivem. É como se elas arrancassem poder da terra, do lugar. Acho que essas bruxas têm um motivo maior pra lhes fazer ir morar mais perto do mato, nas cidades pequenas, sozinhas com seus cães e gatos.
É o reino delas, onde elas são rainhas soberanas em seus domínios."

29 de dezembro de 2010


*Os nomes foram modificados pra preservar a identidade das duas senhoras.

Um comentário:

  1. Lendo seu relato fui tomado por um sentimento de nostalgia, de quando era criança e meu avô me contava histórias muito parecidas com essas. Histórias de "homens de poder" que desafiavam a todos e vivam segundo suas próprias leis, mas que ninguem conseguia matar. Não adiantava fazer tocaia porque do nada sumiam e só reapareciam muito a frente, ou mesmo se fossem encará-los cara a cara na roça podiam atirar, porque nenhuma bala os acertava sempre ricocheteavam na enxada. E agora algo bate totalmente com seu relato eles podiam desaparecer atrás do facão, ele me falava que bastava ter algo a sua frente, qualquer coisa, mas como o facão sempre estava do lado era só ficar no chão. Esses sim eram verdadeiros bruxos!

    Abçs, Dermont.

    ResponderExcluir